segunda-feira, 3 de maio de 2010

TUDO PODE DAR CERTO, de Woody Allen



“– Há uma platéia cheia de pessoas olhando para nós. Pagaram um bom dinheiro pelas entradas... dinheirinho suado... então algum idiota de Hollywood pode comprar uma piscina maior.”


Tudo Pode Dar Certo (Whatever Works, 2009) conta a história de Boris Yellnikoff (Larry David), um velho rabugento que tem o hábito de insultar seus alunos de xadrez. Ex-professor da Universidade de Columbia, ele considera ser o único capaz de compreender a insignificância das aspirações humanas e o caos do universo. Um dia, prestes a entrar em seu apartamento, Boris é abordado por Melodie St. Ann Celestine (Evan Rachel Wood), que lhe implora para entrar. Ele atende ao pedido, a contragosto. Percebendo sua fragilidade, Boris permite que ela fique no apartamento por alguns dias. Ela se instala e, com o passar do tempo, não aparenta ter planos de deixar o local. Até que um dia lhe diz que está interessada nele.

É esta a sinopse do último título de um cineasta que, em última fase da vida, ainda continua a produzir filmes religiosamente. Entretanto, Whatever Works, que em tradução literal significa “tudo funciona”, não é só mais um filme na filmografia do grande mestre. Se o argumento da história não é mais original, por outro lado, há ainda a criatividade de um gênio em elaborar diálogos (e monólogos!) memoráveis e em criar situações dramáticas carregadas de um humor negro ímpar.

O argumento desta história é melhor compreendido quando se analisa a película a partir de seu fim. Acredite, funciona! Em seu último minuto, contrariando a expectativa, Tudo Pode Dar Certo revela ser, na realidade, uma ode à alegria, afirmando esperança nas relações humanas (mas não na natureza humana, é muito importante atentar a essa diferença!). Contemple o último monólogo de Boris:

– Acontece que odeio festas de Ano Novo. Todo mundo desesperado para se divertir. Tentando comemorar de algum modo patético. Comemorar o quê? Um passo mais perto da sepultura? Por isso que ainda não disse o bastante: qualquer amor que puder obter e dar, qualquer que seja a felicidade que puder furtar ou fornecer, tudo funciona! Ninguém se engane, de forma alguma tudo depende da própria ingenuidade humana. A maior parte de sua existência é sorte mais do que você gostaria de admitir. Cristo, sabe quais as chances de um espermatozóide de seu pai, dos bilhões, encontrar o único óvulo que te fez? Não pense sobre isso, vai ter um ataque de pânico.

Boris acredita que a vida já é suficientemente complicada, sem que tentemos racionalizá-la. Talvez, por isso, Allen tenha optado por escrever um roteiro simples. Assim, se você faz uma linda garota surgir no lixo do apartamento de seu protagonista, repentinamente, funciona! Se você faz uma mãe reencontrar sua filha, fugida de casa há meses, sem provas de como a achou, funciona! Se essa mesma mãe de família, que não aceita a diferença de idades entre um casal, decide ter uma relação a três, funciona! E se um pai conservador descobre ser gay na meia-idade, funciona! Ou seja, se o roteiro deste Tudo Pode Dar Certo não é tão elaborado quanto os seus congêneres Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977) e Hannah e Suas Irmãs (Hannah and her Sisters, 1986), é só porque tudo funciona! Ou, dizendo de outra forma, só porque desta vez há um propósito maior...

O propósito maior evoca nada mais que a Ética, obra-prima do filósofo holandês Baruch de Spinoza (1632-1677). Explico: Spinoza sustenta que o que define nossas relações e o que nos define a nós mesmos são menos espécies ou gêneros, que são idéias gerais, abstrações, do que as relações de compatibilidade ou incompatibilidade que estabelecemos com os outros. Não é o que eu sou em si, mas o que eu posso fazer e o que posso sofrer, de que tipo de afeto eu sou capaz. Para Spinoza, cada ser tem sua fórmula de ser, sua definição própria, isto é, uma referência constitutiva que define relações de movimento e de repouso entre suas partes, e uma potência de afetar os outros corpos ou ser afetado por eles. Quando meu ser se compõe com outro ser, quando nossas referências se compatibilizam e se compõem, minha potência aumenta: eu ganho como ser. E isso é recíproco; aquele com quem me componho ganha como ser, igualmente. Ganhar como ser é constatado de maneira muito simples: proporciona alegria. E é esta a definição dada por Spinoza: “A alegria é a passagem de uma perfeição menor a uma perfeição maior”. E, inversamente, “a tristeza é a passagem de uma perfeição maior a uma perfeição menor”. Logo, o que aumenta minha potência me proporciona alegria, o que diminui minha potência me traz tristeza.

Antes de conhecer Melodie, e mesmo depois de conhecê-la, Boris resistia em construir uma relação amorosa. Boris era divorciado, já havia padecido por amor. Boris sabia que amar não depende apenas de nós. Amar é depender. Depender de um objeto que pode sempre nos escapar, uma vez que não formamos senão um com ele. Sabia que amar um ser humano é menos fácil, por dois motivos, pois, primeiramente, não estamos seguros do amor do outro, e, em segundo lugar, não temos certeza da duração, da perenidade desse amor. É esse o problema de ser apegado a um objeto exterior, de depender desse objeto: de certa maneira, nada depende menos de nós que os sentimentos.

Boris temia correr o risco de diminuir ainda mais sua potência. É o que diz Spinoza: Paixão distingue-se de ação. Padecer é sofrer alguma coisa do exterior, é não estar integralmente na origem do que sentimos, é ser, no melhor dos casos, sua causa parcial. Agir é estar por inteiro na origem, essa é a causa adequada do efeito que provocamos e do efeito que sentimos. Agir é manifestar sua potência. Sofrer é ser separado de sua potência.

Mas Boris não tinha muita potência a perder. Entre uma vida de pouca ação e a possibilidade de furtar felicidade do encontro com Melodie, Boris cede e decide arriscar. Ignoramos o que pode o corpo... O corpo encerra surpresas. Pode mais do que julgamos. Como saber do que é capaz? Pelos encontros que fazemos. É necessário fazer um teste. É multiplicando os encontros que aprendemos quem somos, isto é, com quem ou o quê somos compatíveis, o que aumenta nossa potência e nos proporciona alegria; ou, ao contrário, com quem ou o quê somos incompatíveis, o que diminui nossa potência e nos proporciona tristeza. Resultado? Boris e Melodie descobrem-se compatíveis! Para sempre? Concedo-lhe a satisfação de descobrir por si próprio assistindo ao filme.

O problema de combinar ou não com outro é complexo, pois o outro é uma mistura assim como nós. Mas se por um lado não conseguimos nunca dominar tudo o que acontece “fora de nós”, por outro não há salvação se não conseguimos dar conta do que acontece “em nós”. Nesse sentido, a proposta de Allen de não nos preocuparmos com o que acontece “fora de nós” mas, simplesmente, com o amor que pudermos obter e dar (o que é apenas outra forma de dizer "com o que acontece 'em nós'") é, no mínimo, uma dedução plausível.

Sol, sol, sol, mi bemol... Será mesmo que assim tudo funciona?!

P.S.: O célebre tema que abre o Allegro com Brio inicial da Quinta Sinfonia de Beethoven – sol, sol, sol, mi bemol – passou a posteridade como o tema do Destino. As quatro notas significariam as batidas do Destino à porta. A anedota partiu de Anton Schindler, uma espécie de secretário informal do compositor, fonte pouco confiável, que inventou muita coisa sobre o mestre após a morte. É exatamente com essa referência que se inicia o clímax do roteiro de Tudo Pode Dar Certo. É antologicamente hilário...

Baixar Quinta Sinfonia de Beethoven:

11 comentários:

  1. Tenho lido opiniões conflitantes sobre "Tudo Pode Dar Certo", mas, para mim, é suficiente saber que estarei assistindo a um filme do Woody Allen. Quero conferir também muito em parte por causa da performance da Evan Rachel Wood.

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  2. Amo Woody Allen, um dos meus diretores favoritos e tenho curiosidade em assistir a este filme, pelo menos um bom filme dele deve ser.

    Beijos! ;)

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  3. Cinéfila Por Natureza:
    Concordo plenamente que Tudo Pode Dar Certo não é um "Woody Allen" na sua melhor forma. Por exemplo, o roteiro não é capaz de atingir a quintessência de outras obras que, como esta, também refletem o existencialismo e o pessimismo de seu autor. Todavia, como disse no texto, Woody possa assim o ter querido pelos motivos já justificados.
    E se, por um lado, falta-lhe criatividade em linguagem cinematográfica, por outro, sobra-lhe em filosofia. E só por isso, o filme já vale a pena!
    Ah! Evan Rachel Wood protagoniza as duas cenas, na minha opinião, mais engraçadas: a da referência à batida do Destino à porta, e a do barco quando exemplifica entropia. É hilário...
    Um abraço!

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  4. Mayara Bastos:
    Também amo a filmografia deste diretor. Nada dela é insignificante. Tampouco este Tudo Pode Dar Certo!
    Ah! E este não é só um bom filme, é, pelo menos, um ótimo filme!
    Um abraço.

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  5. Carissimo,

    Não conhecia seu espaço e quero fazer uma ressalva aqui: você escreve muito bem, propõe uma reflexão interessante em cima dos filmes e sai do óbvio - eu tento fazer isso também, afinal criticar não é só escrever sinopse e falar de um ou outro ator. É ousar, é refletir, é poetizar! e você faz isso no seu espaço, gostei muito da construção deste texto e de outros, parabéns mesmo. Linkei teu blog ao meu!

    Outra coisa, não vi, ainda, este filme do Allen - mas sou fã do seu universo...

    abraço cinéfilo!

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  6. Gostaria de saber se tem email ou Msn, quero entrar em contato. abs e aguardo!

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  7. Cristiano Contreiras:
    A proposta do Dialogando Cinema é exatamente refletir o filme juntamente com as teorias dos grandes filósofos. Afinal, não é possível realizar Cinema-Arte dissociado da Filosofia!
    Muito obrigado pelos teus elogios.
    Um abraço.

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  8. Interessante a sua reflexão a partir do conflito do filme. O engraçado é que ela também funciona. rsrs (não podia perder esse trocadilho).
    Sério, Allen é um dos grandes filósofos da atualidade. Embora o próprio não se reconheça como tal.
    ABS

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  9. Reinaldo:
    Adorei o trocadilho! Achei ele típico do humor do próprio Allen. Muito bom mesmo. Acho que só agora, com o seu comentário, meu ensaio ganhou um desfecho tão genial quanto o argumento do filme. Hilário!
    Visite sempre o DC!
    Grande abraço.

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  10. cassio, gostei muito do comentario sobre o filme "tudo pode dar certo". realmente, como diz espinosa, alegria compartilhada é alegria multiplicada! abraço joão.

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  11. Joao: Percebo que captastes a essência de "Tudo Pode Dar Certo". Fico contente que tenhas gostado! Posso acreditar que funciona?! rsrsrs
    Seja bem-vindo ao DC!
    E, sinta-se em casa, sempre que quiser expressar tuas opiniões: acrescentar algo mais, criticar qualquer coisa, deixar um elogio... rsrsrs
    Grande abraço.

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